Resgate da memória do Holocausto no Brasil

quinta-feira, 28 de agosto de 2008


Resgate da memória do Holocausto no Brasil
Portal na internet reunirá documentos inéditos que revelam políticas de Estado anti-semitas do país

Entre 1937 e 1948, o Brasil teve políticas de Estado anti-semitas que comprometeram a vida de muitos judeus sobreviventes do Holocausto. A imigração era regulamentada por circulares secretas que proibiam a emissão de vistos para judeus e exigiam passagens de ida e volta para que eles pudessem entrar no país. Esses documentos estão sendo analisados pela equipe da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, da Universidade de São Paulo, e serão disponibilizados em um portal na internet – o Arquivo Virtual sobre Holocausto e Anti-Semitismo (Arqshoah).

Essa iniciativa reunirá informações sobre a comunidade judaica radicada no Brasil durante o período de ascensão do nazi-fascismo na Europa. O portal será lançado em 27 de janeiro de 2009, Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Estarão disponíveis ali entrevistas com refugiados e parentes, livros de memórias, rotas de fuga, uma “galeria dos justos” com os brasileiros que ajudaram a salvar judeus, notícias da época, produções artísticas sobre o Holocausto, livros e artigos brasileiros de orientação anti-semita.

Uma equipe de pesquisadores está trabalhando na digitalização de documentos oficiais disponíveis no Arquivo Histórico do Itamaraty e no Arquivo Nacional. Entre o material selecionado, estão mais de 20 circulares secretas anti-semitas editadas a partir de 1937, durante o Estado Novo, incluindo outras versões produzidas pelo governo Dutra.

“Surpreendi-me com uma circular de 1948 que não deixa dúvidas sobre a postura intolerante do Brasil”, afirma Tucci. "Mesmo após a divulgação das atrocidades praticadas pelos nazistas durante o Holocausto, o país continuou a proibir a emissão de vistos para judeus." A historiadora conta que, entre 1937 e 1948, muitos judeus entravam no Brasil com visto de católicos ou turistas e com documentos falsos para fugir das perseguições e da morte planejada pelos nazistas e por países colaboracionistas.

Tucci ressalta que tais medidas eram mantidas secretas pelo Itamaraty e pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores, o que contribuiu para difundir uma imagem deturpada do Brasil como nação solidária à causa dos refugiados judeus frente a entidades internacionais. “Nos textos de diplomatas, médicos, psiquiatras e juristas, fica claro que eles eram contra a entrada de sobreviventes dos campos de concentração, sob a alegação de que eles não tinham condições físicas e mentais para fazer parte da população brasileira, que precisava de pessoas saudáveis e aptas para o trabalho”, relata a historiadora.

Trajetória de vida dos refugiados

Boletim do Comitê Auxiliar do Joint editado em 1936. Essa organização teve importante papel no salvamento de milhares de refugiados do nazi-fascismo que buscaram refúgio nas Américas, em Portugal e até na China (foto: Arquivo Tucci/SP).



A equipe liderada por Tucci está realizando um inventário dos judeus e ciganos refugiados do nazismo no Brasil. Trata-se do primeiro mapeamento daqueles que buscaram abrigo no país fugindo das perseguições raciais sustentadas pelos regimes nazi-fascistas.

Segundo a historiadora, o número de refugiados em nosso país pode chegar a 18 mil, mas essa contagem pode estar subestimada em função dos vistos concedidos aos ‘católicos’, turistas ou ‘em trânsito’. “Com o inventário dos vistos negados, poderemos também ter uma dimensão da aplicação das circulares secretas que garantiram milhares de indeferimentos”, completa Tucci.

O grupo está entrevistando sobreviventes ou seus descendentes e analisando listas de passageiros de navios, assinatura de vistos nos passaportes, fotografias e outros documentos. O inventário está sendo feito com o preenchimento de formulários distribuídos entre as comunidades judaicas para a identificação dos sobreviventes de campos de concentração e de seus familiares ou conhecidos. Quem tiver informações sobre sobreviventes, brasileiros que ajudaram judeus refugiados ou registros da época pode entrar em contato com a equipe do projeto pelo endereço eletrônico arqshoah@usp.br ou pelo telefone (11) 3091-8598.

As entrevistas serão disponibilizadas no portal Arqshoah, bem como as rotas de fuga dos refugiados e seus livros de memórias. O portal terá ainda a seção “Ação Educativa”, com material didático sobre o Holocausto disponível para professores. “Precisamos introduzir o debate sobre perigo das idéias racistas em sala de aula, pois essa iniciativa incentiva nossos jovens a ter uma postura mais tolerante e democrática frente ao diferente”, afirma Tucci.

O estímulo principal que move sua equipe é impedir que a memória dos sobreviventes do Holocausto radicados no Brasil caia no esquecimento. “Há um silêncio proposital sobre temas como o Holocausto”, avalia Tucci. “Isso foi minimizado com a abertura de alguns arquivos, mas dependemos ainda de uma postura do governo brasileiro para que sejam abertos outros, especialmente os da ditadura militar. É uma questão urgente que exige práticas democráticas para o fortalecimento de nossos ideais de cidadania”.


Tatiane Leal
Ciência Hoje On-line
26/08/2008
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