Pesquisador inglês diz que os alemães distorceram a memória da Segunda Guerra Mundial (Carta Capital - 24.03.10)

quarta-feira, 24 de março de 2010


Pesquisador inglês diz que os alemães distorceram a memória da Segunda Guerra Mundial

Carta Capital - 24/03/2010 17:26:36

A morte é um problema dos vivos", escreveu o sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990). Ele falava dos impasses psicológicos do processamento do luto e da perda nas vidas individuais de homens e mulheres, mas não é difícil
transferir a curta definição para o universo coletivo da história. Após o trauma da Segunda Guerra Mundial, quase todos os países diretamente envolvidos desenvolveram as mais variadas formas de bloqueio da memória, virando as costas ao passado, esquecendo-o de forma patológica ou recordando-o de maneira completamente distorcida. O historiador Henry Rousso
designou tal processo como "Síndrome de Vichy" para caracterizar a mentalidade francesa no pós-guerra. No clássico Embracing Defeat, outro historiador, John Dower, mostrou como os japoneses emergiram da guerra com um forte complexo de vítimas, preocupados consigo mesmos e prontos a esquecer o sofrimento que haviam causado a outros povos.

Em *Alemanha, 1945 - Da guerra à paz* (Companhia das Letras, 488 págs., R$ 55),-- o inglês Richard Bessel enfrenta o espinhoso desafio de fazer o mesmo estudo em relação à Alemanha do pós-guerra. Espinhoso porque o processamento
da culpa pela extensão da tragédia e pelos "anos terríveis de Hitler" sempre foi difícil, lento e cercado de constrangimento e tabus verbais até mesmo para os historiadores. Em 1986, quando Ernst Nolte, sem minimizar os hediondos crimes nazistas, argumentou que, sem o precedente bolchevique os referidos crimes não poderiam ser totalmente explicados, acabou por detonar a extensa "polêmica dos historiadores" (Historikerstreit). A resposta veio, ainda no mesmo ano, com Jürgen Habermas, argumentando que a "contextualização" dos crimes reclamada por Nolte não passava de um revisionismo canhestro e cúmplice, já que o crime nazista foi único na sua escala, ambição e maldade infinitas.

Até Joachin Fest, o mais famoso biógrafo alemão de Hitler, ganhou o rótulo de "conservador" e saiu bem chamuscado do episódio por defender o direito de expressão de Ernst Nolte, um "excêntrico de direita", na expressão de Habermas. É que o peso do passado era enorme e qualquer sugestão de um "ano zero" alemão gerava forte impasse ético: partir do zero era condição para reconstruir o país ou mero artifício para esquecer as sombras criminosas do passado? Vinte anos depois, e com muita poeira já baixada após as viradas de 1989, parece ser tempo de enfrentar o desafio, e Bessel o faz de forma
competente, bem documentada e, tanto quanto possível, equilibrada.

Decididamente, 1945 foi o ano do day after para a Alemanha. Quase a metade de todas as suas perdas militares durante a Segunda Guerra ocorreu apenas durante aquele ano trágico. Quando o regime desabou, na primavera do mesmo
ano, deixou o povo que com ele se identificara completamente escancarado à vingança de todos os que tinham sofrido debaixo do tacão nazista. Num capítulo particularmente corajoso, Bessel documenta como as vastas reservas de ódio e de amargura no rastro da guerra só encontraram um canal de escoamento, a vingança contra os alemães. E pouco importava saber se aqueles
contra a quem a vingança se voltava eram de fato os responsáveis.

O historiador Bessel descreve todos os detalhes dessa tragédia: a cruenta evacuação de cidades ameaçadas pelos ataques aéreos aliados, o bombardeio de cidades inteiras, como Dresden, a fuga para o oeste de milhões de alemães
escapando da ocupação do Exército Vermelho, a subsequente expulsão de outros milhares, após a rendição incondicional da Wehrmacht e a liquidação final dos maiores campos de extermínio.

Calcado em pesquisas recentes, mostra como foi intensa a ansiedade dos exércitos vitoriosos" em humilhar a outrora poderosa "raça dominante". Mais do que o desejo sexual desenfreado, foi este compulsivo desejo de vingança que ajudou a explicar a frequência com que mulheres alemãs foram estupradas por soldados soviéticos diante dos maridos ou em público. O medo das
retaliações perpetradas pelos exércitos aliados também foi utilizado como estratégia dos soviéticos para facilitar as transferências forçadas, as evacuações e o domínio territorial.

Outros integrantes das tropas aliadas também não ficaram atrás nas pilhagens, praticando incêndios deliberados e utilizando-se de extrema violência - como as tropas francesas em Freudenstadt ou soldados das forças britânicas e americanas em cidades do oeste da Alemanha. Mas o que realmente exacerbou o instinto de vingança das tropas aliadas foram as cenas terríveis presenciadas pelos "libertadores" dos campos de concentração em 1945. Os britânicos em Bergen-Belsen, os americanos em Dachau ou os exércitos que libertaram centenas de outros campos. As cenas que eles presenciaram
compunham a prova viva dos assassinatos em massa. Sobreviventes emaciados, montes de cadáveres empilhados e o fedor da morte em todos os lugares.

"O que faremos com esses milhares de mortos no Dia do Juízo Final?", confessou o angustiado Jean Fourastié. A montanha de mortos provocou um incontrolável oceano de amarguras e ressentimentos que banhou a todos, sem exceções. Bessel reconstitui até mesmo alguns conflitos violentos entre os judeo-alemães (que falavam a "língua dos assassinos" e desprezavam os "judeo-eslavos") e os judeus leste-europeus, que falavam iídiche, não se identificavam com a Alemanha e só pensavam em emigrar.

Em 1945 os alemães foram decididamente transformados de protagonistas ativos em observadores passivos do seu próprio destino. O profundo desenraizamento pós-guerra atingiu mais da metade da população alemã. Os pontos fixos da vida de milhões de pessoas foram abolidos, física e emocionalmente. Cerca de 26 milhões de alemães, ou porque haviam fugido ou sido expulsos, tinham perdido suas casas nos bombardeios de 1945. Bessel também é muito competente na análise geracional, que tem a vantagem de sincronizar as faixas de idade com os acontecimentos históricos.

Os alemães que nasceram em 1880 aspiravam apenas a uma tranquila aposentadoria em 1945, o que não ocorreu. Já os que nasceram por volta de 1900 formaram a "geração dos sem-limite": aqueles que mais se aproveitaram das extraordinárias facilidades oferecidas pelo Terceiro Reich, realizando suas notórias carreiras no assassinato e na guerra. Os que nasceram em torno da década de 1920, atingindo a idade adulta sob o governo de Hitler, formaram a geração que mais sofreu com o choque de 1945. Todos tiveram os seus primeiros anos de vida roubados, seja pelo serviço militar, pelo campo de prisioneiros, pelas mutilações da guerra ou pela ausência ou perda de parceiros e familiares.

Todos sabemos que, no imaginário nazista, imperava a truculenta fórmula da "destruição criativa". Quanto maior a destruição, maior a inspiração para as gerações futuras. Bessel demonstra como tal prognóstico foi um tiro que saiu pela culatra. Em lugar de fornecer inspiração para as próximas guerras, a catástrofe de 1945 fez o contrário: predispôs as futuras gerações alemãs a
um profundo horror ao militarismo nacionalista e a um renitente e entranhado pacifismo. "A Segunda Guerra Mundial foi uma guerra para acabar com todas as guerras" - esta definição tornou-se praticamente consensual na cultura popular e política da Alemanha nas décadas seguintes.

Uma das teses centrais do livro é que o principal resultado de todos os horrores da guerra, cujo epicentro esteve em 1945, foi que os alemães emergiram com um poderoso complexo de "vítimas inocentes num mundo injusto". O choque foi tão brutal que não restou aos alemães energia mental para se preocuparem com infortúnios alheios, concentrando-se pragmaticamente nos
seus próprios problemas. À semelhança dos japoneses, eles viveram a tensão entre o desejo de se lembrar dos próprios sofrimentos e a disposição de esquecer o que tinham infligido a outros. Argumento polêmico que deixa muitas perguntas no ar e interrogações para novas pesquisas e outras possíveis respostas. Até porque ainda continua a valer aquela curta e
verdadeira definição de Norbert Elias.

Fabrício Augusto Souza Gomes
E-mail:
fabricio.gomes@gmail.com
 
Fonte: [historia_uerj]
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